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Artigo – Vésperas do SERP: uma ideia fora do lugar – Début das entidades registradoras – Parte II – Por Sérgio Jacomino
27 DE SETEMBRO DE 2023
Hoje damos seguimento à série iniciada com o texto publicado no site Migalhas Notariais e Registrais, na sua edição de 29/5/2023. O objetivo destes artigos é iluminar o caminho acidentado que nos conduziu ao SERP, “uma ideia fora do lugar”1.
Ao lado dos tradicionais registros de direitos, previstos na Lei 6.015/1973, foram criadas, ao longo do tempo, outras modalidades de registros públicos2. As chamadas entidades registradoras, que tantas apreensões suscitou entre registradores, estreariam no cenário brasileiro com a criação do CDA (Certificado de Depósito Agropecuário) e do WA (Warrant Agropecuário3) pela MP 221/2004, convertida depois na Lei 11.076/2004, alterada posteriormente pela Lei 13.986/2020. Ali se constituía uma modalidade de registro de ativos financeiros e de valores mobiliários de que trataria posteriormente a lei 12.810/2013 (inc. III do art. 4º).
Mais tarde, com o advento da lei 12.543, de 8 de dezembro de 2011, seria acrescentado o art. 63-A à lei 10.931/2004, in verbis:
Art. 63-A. A constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários em operações realizadas no âmbito do mercado de valores mobiliários ou do sistema de pagamentos brasileiro, de forma individualizada ou em caráter de universalidade, será realizada, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente mediante o registro do respectivo instrumento nas entidades expressamente autorizadas para esse fim pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, nos seus respectivos campos de competência.
Parágrafo único. O regulamento estabelecerá as formas e condições do registro de que trata o caput, inclusive no que concerne ao acesso às informações.
A lei era defectiva e francamente criticada pelos agentes do mercado. A redação do dispositivo acabava por limitar a constituição de ônus e gravames a operações realizadas unicamente no âmbito do mercado de valores mobiliários ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro, gerando incertezas jurídicas nos operadores. Afinal, quais operações estariam contempladas em seu plexo?4
Assim nascia a lei 13.476, de 28 de agosto de 2017, que alteraria a lei 12.810/2013, a fim viabilizar a constituição de ônus e gravames de ativos financeiros e valores mobiliários depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que tais operações dissessem respeito. O típico instrumento jurídico-financeiro da securitização desenvolvia-se e ganhava espaço no Direito brasileiro. Aqui aparece, também, e novamente, a locução “entidade registradora”, expressão vaga e imprecisa, sem nome próprio, que se implantava no quadro normativo e vicejaria no cenário legal com bastante vigor.
Art. 26. A constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado será realizada, exclusivamente, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que os ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito.
§ 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas.
§ 2º A constituição de gravames e ônus de que trata o caput deste artigo poderá ser realizada de forma individualizada ou universal, por meio de mecanismos de identificação e agrupamento definidos pelas entidades registradoras ou pelos depositários centrais de ativos financeiros e valores mobiliários.
§ 3º Nas hipóteses em que a lei exigir instrumento ou disposição contratual específica para a constituição de gravames e ônus, deverá o instrumento ser registrado na entidade registradora ou no depositário central, para os fins previstos no caput deste artigo.
§ 4º Compete ao Banco Central do Brasil e à Comissão de Valores Mobiliários, no âmbito de suas competências, estabelecer as condições para a constituição de gravames e ônus prevista neste artigo pelas entidades registradoras ou pelos depositários centrais, inclusive no que concerne ao acesso à informação.
§ 5º Compete ao Banco Central do Brasil, no âmbito de suas atribuições legais, monitorar as operações de crédito afetadas pelo disposto neste artigo, com a verificação do nível de redução do custo médio dessas operações, a ser divulgado mensalmente, na forma do regulamento.
Segundo o Diretor do Banco Central, REINALDO LE GRAZIE, esta mudança “ocorreu para ampliar o escopo de atuação das infraestruturas do mercado financeiro, mais especificamente das entidades registradoras, na constituição de gravames e ônus sobre operações realizadas no âmbito do mercado financeiro, não mais limitadas ao universo do mercado de valores mobiliários e do sistema de pagamentos brasileiro. Com isso, pretendeu-se que os benefícios alcançados com a constituição de gravames e ônus, realizados nestas infraestruturas, fossem estendidos a outras operações realizadas entre as instituições financeiras e seus clientes”5.
Muito embora o arcabouço legal criado almejasse prover segurança às ditas operações, com o registro dos chamados “ônus e gravames”, a assimilação de expressões como eficácia perante terceiros, publicidade constitutiva, entidade registradora etc., tão caras ao direito civil6, causava apreensões entre os registradores brasileiros. Seria possível que estas entidades para-registrais progressivamente avançassem ainda mais e absorvessem a constituição de direitos reais de garantia mobiliária e imobiliária? Eu mesmo cogitaria que o avanço sobre domínios da publicidade jurídica, criada por lei, regulada e fiscalizada pelo Poder Judiciária, poderia representar o fato consumado e de nada nos adiantaria argumentar com princípios registrais e com a tópicas como “segurança jurídica” etc. Por essa razão o texto era provocativo: A inconstitucionalidade dos meteoros7…
A inquietação não era ociosa. O abandono de instrumentos tradicionais de garantia real imobiliária, como a hipoteca, nos levaria à adoção de sistemas das garantias fiduciárias, recuperando modelos dissonantes na perspectiva da larga tradição do sistema da Civil Law8. Ademais, a cessão dos créditos imobiliários, nos termos do § 1º do art. 22 da lei 11.931/2004, além de transferir os créditos garantidos ao cessionário, investe-o na propriedade resolúvel. As mutações na titularidade dos direitos reais ocorreriam, a partir desta lei, fora do Registro, em repositórios extra tabulares, e o trato sucessivo se interromperia, inaugurando cadeias formadas no âmbito de entidades registradoras, em afronta aos artigos 195 e 237 da LRP, dentre outros9. Esta espécie de fork registral deixa inscrições abertas e adéspotas nos cartórios. Afinal, não se sabe quem seja, num dado momento, o titular do crédito e das garantias reais representadas pela propriedade fiduciária.
Desde sua concepção, ainda no século XIX, o Sistema Registral busca atrair para seus livros de registro as vicissitudes que, muitas vezes, mantêm-se ocultas e têm o condão de inocular o germe de incertezas e insegurança no tráfico jurídico-imobiliário, abalando a plena eficácia dos direitos inscritos. Sempre foram conhecidas as tenebrosas figuras de ônus e gravames ocultos, cujos efeitos deletérios o Registro de Imóveis buscou remediar ao longo de mais de uma centúria.
Entretanto, vez por outra, experimentamos recidivas desse fenômeno que representa uma nódoa sistemática e que pode acarretar graves repercussões jurídico-econômicas. A legislação não cerca, com o rigor necessário, as hipóteses que escapam aos tradicionais processos da publicidade registral que deve ser concentrada no Registro de Imóveis, entes criados e fiscalizados pelo Poder Público, cuja experiência provada remonta há mais de um século.
Causa espécie a “fuga privatística”10 de certas transações com transcendência real de seu estrado natural de publicidade jurídica. Como se sabe, a disposição legal contida no art. 169 da LRP criou um ônus – não em sentido estrito de obrigação ou dever jurídico, ou “gravame”, como se diz na novilíngua registral, mas de faculdade concedida pela lei ao interessado e que tem o condão de desencadear certas e importantes consequências jurídicas11. Ao dispor que os atos de registro são obrigatórios, consagrou o princípio da inoponibilidade de atos, fatos e negócios jurídicos não inscritos12 – nota bene: não inscritos nos registros públicos. A regra se associa com a disposição contida no art. 252 da LRP, pois o registro, “enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.
Note-se que a lei 13.097/2015 é posterior à lei 10.931/2004. Esta norma, de 2004, previu, no § 2º do artigo 22, a dispensa de averbação das cessões de crédito garantidos por direitos reais. O fato representado pelo advento de lei posterior é um dado que deve ser relevado na compreensão dos problemas postos pela lei 10.931/2004, especialmente pelo advento de novas tecnologias que permitiriam operações em XML, em tempo real e a custo modicíssimos. Além disso, a dispensa da averbação não se compagina com os princípios do direito civil e registral. É da tradição do direito registral brasileiro a obrigatoriedade do registro (hoje averbação) de cessões de crédito e de sub-rogações nos direitos reais (n. 30 e 35, inc. II, do art. 167 cc. art. 246 da LRP).
AFRÂNIO DE CARVALHO enfrentaria, a seu tempo, a obrigatoriedade da averbação da cessão do crédito garantido por hipoteca. Diz:
“Assim, importa reconduzir claramente a cessão da hipoteca ao sistema do registro com caráter obrigatório e esclarecer, de uma vez por todas, qual a formalidade adequada para consigná-la. A obrigatoriedade tem por fim assegurar ao cessionário a permanência da inscrição e a impossibilidade do seu cancelamento à sua revelia. Afinada com o sistema de publicidade, foi aplaudida ao tempo do Regulamento n.º 370, de 1890, e, a despeito do texto dúbio do Código Civil, continua a ser havida como vigente”.
(…)
“Além de prevenir a reabertura de uma discussão estéril, o registro obrigatório da cessão fará com que esta surta normalmente efeitos contra terceiros, impedindo assim que estes venham a ser ludibriados mediante sucessivas transferências do mesmo crédito feitas indevidamente pelo credor.
Terceiros são principalmente os eventuais cessionários do crédito, uma vez que, registrada a cessão por um deles, este se torna o verdadeiro titular da hipoteca, sem que os demais lhe possam opor qualquer pretensão, em vista da prioridade do seu registro”13.
O foco das digressões de AFRÂNIO DE CARVALHO repousava sobre os direitos reais de garantia hipotecária. Ora, a alienação fiduciária é um típico direito real de garantia e a sua equivalência com a hipoteca, nos aspectos de garantia, eficácia e oponibilidade, é perfeitamente admissível. Por fim, alie-se ao princípio de continuidade os de presunção (“presume-se pertencer o direito a quem o inscreveu assim como o inscreveu”14 – art. 1.231 do CC) – e o de eficácia da inscrição (enquanto o registro não for cancelado, este “produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido” (art. 252 da LRP) e teremos um quadro mais nítido.
O advento de instituições custodiantes e de registro ocorre no contexto das operações de securitização e de cessão de direitos de garantia por meio de cédulas ou de recebíveis15. Mesmo após o seu début no registro imobiliário, com a criação dos CRIs (certificados de recebíveis imobiliários) sempre buscou-se manter o liame entre os recebíveis (securitizados) e o seu lastro na garantia real por ocasião de emissões dos títulos (arts. 7º e 8º da Lei 9.514/1997). Entretanto o elo foi rompido com o advento da lei 14.430/2022; desde então, não há um vínculo persistente que permita a atualização, em tempo real, das cessões sucessivas que podem ter origem na mesma garantia inscrita. Dizem BRANDELLI e MAZITELI NETO que a supressão do vínculo orgânico entre o produto financeiro e o imóvel, que lhe dá lastro, representa um grau de opacidade criticável:
“Ao reverso, na contramão da necessidade de maior publicidade para a análise do risco de crédito, não há, na Lei 14.430/2022, qualquer menção à matrícula. Mais que isto, agora, sob este novo marco regulatório, o registro do termo, ao contrário de se dar no registro imobiliário oficial, agora é obrigatório em entidade, autorizada pelo Banco Central ou pela CVM, a exercer tal função”16.
O que é central ou periférico nesta discussão?
A criação de plataformas e repositórios digitais eletrônicos, a latere dos registros públicos tradicionais, é um fenômeno que se instaura e desenvolve rapidamente pelo advento de novas tecnologias da informação e comunicação17. Além disso, o surgimento e o desenvolvimento de novas modalidades de operações – como a securitização – acarreta a necessidade de novas e adequadas soluções de publicidade e eficácia das transações que se desdobram a partir do objeto da garantia imobiliária cuja âncora é a matrícula eletrônica.
A primeira grande tentação de todos aqueles que cogitam a criação de um sistema registral eletrônico – moderno, rápido, eficiente e barato -, é tentar promover a centralização de dados, concentração de operações, de acesso e de intermediação de transações. Confundem-se a centralização de acesso (universalização) com a concentração de dados, operações e intermediação. Já tive ocasião de apontar que esta tentação é reacionária e representa um retrocesso na ideia genial que foi a nossa blockchain analógica18 – a criação dos cartórios brasileiros, com distribuição de atribuições, competências e dados entre todas as unidades do círculo registral:
“Em tempos de ereção de cripto-soluções descentralizadas, vendidas como remédio para todos os vícios tipicamente humanos – como os NFT’s baseados em blockchain, […] pensar em centrais, como o SERP, soa-nos um irremediável soluço reacionário.
Entretanto, é ainda pior. Quando se pensa que os protocolos divinos do sistema criptográfico podem oferecer soluções paliativas ao sistema estatal de prevenção, adjudicação, defesa e garantia de direitos, até mesmo NICK SZABO seria capaz de nos convencer do acerto de soluções apresentadas ainda em 1998: ‘Straightforward transcription of written records into a centralized online repository would make many of these problems even worse – electronic records can be highly vulnerable to loss and forgery, and insiders are the most common source of such attacks. This paper proposes a secure, distributed title database to prevent such attacks against property rights in the future’.
Ele concluiria, afinal, que a descentralização é a solução: ‘this technology will give us public records which can survive a nuclear war'”19.
A maior agilidade e liberdade de atuação, livre das peias fiscalizatórias e regulamentares do Poder Judiciário, ao lado de facilidades de gestão de registros concentrados em grandes bancos de dados, parece ter inspirado a decisão de emular as ditas entidades registradoras, buscando-se uma precária equiparação20.
Esta foi, possivelmente, a senha para o apoio entusiasmado que alguns setores deram às iniciativas legislativas de criação de entidades registradoras registrais, com o perdão da tautologia. Além disso, pretendeu-se muito mais: abarcar, entre os leques de atribuições próprias, as de registros extravagantes, criados no âmbito do mercado de capitais, com a assimilação de novas e poderosas ferramentas de tecnologia financeira, de comunicação e informação21.
Vamos reprisar as iniciativas que se sucederam no tempo. Afinal, vale a pena ver de novo…
PL 9.327/2017 – a dança das cadeiras: protesto sai – RTD entra
Vamos iniciar nosso périplo pelo PL 9.327/2017, depois convertido na lei 13.775/2018. Buscou-se disciplinar a emissão de duplicatas sob a forma escritural por entidades que exerceriam a “atividade de escrituração de duplicatas”, dispensado, de partida, o protesto do título, tornado meramente facultativo, (§ 2º do art. 6º do PL 9.327/201722). O projeto nos revelaria uma nova entidade registradora, fiscalizada pelo Banco Central do Brasil, nos termos de diretrizes do Conselho Monetário Nacional (parágrafo único do art. 2º do projeto original do deputado JÚLIO LOPES).
O PL ganharia emendas na sua tramitação e a previsão da criação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto (afinal consagrada no art. 41-A da Lei 9.492/1997) foi assim justificada pelo deputado RUBENS OTONI:
“Ademais, o substitutivo prevê a criação, pelos Tabeliães de Protesto, de uma central nacional de serviços eletrônicos, cuja adesão deverá ser obrigatória sob pena de responsabilização disciplinar, que permitirá à sociedade o acesso centralizado e eletrônico a diversos serviços que, hoje, são prestados de forma descentralizada, aspecto que é de grande relevância para o país”23.
Nesta altura, uma característica gravosa se revelou no âmbito dos serviços notariais e registrais – advinda certamente do impacto das novas tecnologias de informação e comunicação e ela despontaria claramente neste projeto: a confusão de atribuições próprias de cada especialidade. Depois da tentativa de provocar a depressão da atuação do tabelião de protesto, tal como disposto no PL 9.327/2017, o Dep. ELI CORRÊA FILHO apresentaria uma emenda criando outra central – a do RTD – justificando-a deste modo:
“[…] motivo que evidencia a conveniência da concentração das informações registrais pela Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos, que fornecerá acesso fácil e unificado às informações registrais, mas com a vantagem de ter o suporte de uma rede integrada por mais de 3.000 cartórios espalhados por todo o país, atuando toda essa estrutura em apoio às entidades autorizadas pelo Banco Central para a formação de um banco de dados seguro e confiável, com absoluta transparência e imparcialidade, bem como para a aproximação do cidadão comum e de micros e pequenas empresas a esse robusto sistema de informações integradas”24.
Notem-se as expressões – concentração de informações em central nacional, banco de dados seguro etc. São expressões que denotam o impulso de concentrar as atividades registrais em entes destacados do sistema constitucional dos Registros Públicos.
A criação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto foi afinal consagrada na lei 9.492/1997 (art. 41-A). Já a Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos (§ 2º do art. 3º da lei 13.775/2018), criada com finalidades muito específicas, dependeria de regulamentação do Poder Executivo, o que aparentemente não ocorreu.
A lei 13.775/2018 criaria uma Central de RTD homóloga ao estereótipo das entidades registradoras. No § 2º do art. 3º previu-se que, no caso da escrituração de que trata o caput do dito artigo (emissão de duplicata sob a forma escritural), a ser feita pela Central Nacional de RTD, após autorizada a exercer a atividade prevista no caput (§ 1º do mesmo artigo25), a referida escrituração caberia, em regra, ao oficial de registro do domicílio do emissor da duplicata.
Escrituração de duplicatas escriturais? A cargo de registradores? Isto soa, deveras, extravagante. Esta bizarrice somente seria suplantada pela tentativa de criação do dublê de registrador e agente de garantias, como proposto por alguns registradores e veiculado por emendas oferecidas na tramitação da MPV 992/2020, como se verá em detalhes à continuação deste trabalho.
O RTD buscou, àquela altura, ombrear-se às entidades registradoras, que exerceriam “a atividade de escrituração de duplicatas escriturais”. Como vimos, estas entidades deveriam “ser autorizadas por órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta a exercer a atividade de escrituração de duplicatas”, vale dizer, pelas autoridades monetárias ligadas ao Banco Central ou Conselho Monetário Nacional. Buscava-se, de quebra, escapar da regulamentação e fiscalização do Poder Judiciário…
Entretanto, essa configuração extravagante não logrou êxito. Ficou na história das leis que “não pegaram”. Os ditos órgãos da administração federal jamais regulamentaram tal entidade registradora de registradores que assim ficou à deriva, sem lastro e direção. Busca-se, agora, ancorá-la no SERP (inc. VI do art. 7 da lei 14.382/2022), dispondo, dita lei, que o CNJ deverá regulamentar “a forma de integração da Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos, prevista no § 2º do art. 3º da lei 13.775/, de 20 de dezembro de 2018, ao SERP”. Deslocou-se o eixo do “órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta” para o Poder Judiciário (Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ).
Seja como for, o Provimento CNJ 139, de 1 de fevereiro de 2023, não tratou disso. A Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto deverá interoperar com o SERP (art. 15), bem assim os tabeliães de notas (art. 16). Já a Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos restou à margem e as unidades de RTDPJ ficarão vinculadas diretamente ao ON-RTDPJ (parágrafo único do art. 3º) que, por seu turno, integrará o ON-SERP (art. 3º). Todos sob a regulação, fiscalização e coordenação do Poder Judiciário.
Entidades registradoras registrais – a história se repete
No próximo capítulo, vamos nos debruçar sobre as medidas provisórias e vários projetos de lei que buscaram alterar a Lei de Registros Públicos, produzindo conteúdos que serviriam para fundamentar as reformas que culminariam com a Lei 14.382/2022.
Em seguida, vamos igualmente nos debruçar sobre a minuta de medida provisória e do projeto de Home Equity encaminhados por registradores ao Governo Federal. Nesta documentação, aparecerão figuras controversas – como o agente de garantias (a cargo de registradores de RI e RTD) e o malsinado Serviço Central de Gestão de Garantias, que originalmente ficaria a cargo da “Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados, de que trata o art. 41-A da lei 9.492, de 1997”.
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1 JACOMINO. Sérgio. SERP – Uma ideia fora do lugar – parte I. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 29/5/2023. “Uma ideia fora do lugar”, é paráfrase do célebre livro de ROBERTO SCHWARS que apontou, ainda em 1973, que as ideias importadas acabam se desfigurando na sua realização prática. A nouvelle vague registral, subserviente aos ditames da cultura jurídica alienígena, nos revelou um monstro disforme – SERP – o “Monstro de Horácio” dos Registros Públicos.
2 A própria LRP o prevê no § 2º do art. 1º que “os demais registros reger-se-ão por leis próprias”. Há vários exemplos: Registro de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998, art. 18 e ss. c.c. § 2º do art. 17 da Lei 5.988, de 14.12.1973); Registro de Marcas e Patentes e Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996); Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (Lei 8.934/1994). O exemplo emblemático se daria com o registro de veículos automotores e de seus gravames. O STJ decidiria que o registro administrativo da alienação fiduciária de veículos automotores no órgão de licenciamento faria as vezes do registro jurídico a cargo do Cartório de Títulos e Documentos (RTD), “por isso que, mercê de a exigência de duplo registro revelar odiosa imposição, afronta o princípio da razoabilidade, posto impor desnecessário bis in idem”. Koll: http://kollsys.org/ofl. Os precedentes mais gravosos são do STF: ADIs 4.227 (http://kollsys.org/jb0), 4.333 (http://kollsys.org/jb1) e o Recurso Extraordinário 611.639 (http://kollsys.org/jb2), com repercussão geral reconhecida. V. JACOMINO. S. RTD – crônica de uma morte anunciada. In Observatório do Registro, 22/10/2015: http://bit.ly/rtd-stf-obregistro.
3 O CDA é “título de crédito representativo de promessa de entrega de produtos agropecuários, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico”. Os CDA’s são depositados em conformidade com a Lei 9.973/2000. Já o warrant agrário “é título de crédito representativo de promessa de pagamento em dinheiro que confere direito de penhor sobre o CDA correspondente, assim como sobre o produto nele descrito” (art. 1º da Lei 11.076/2004).
4 Esta foi a avaliação na reunião do Banco Central (Ata BCB 3.2O7a), parecer de REINALDO LE GRAZIE, Diretor de Política Monetária, firmado em 5/9/2018. Koll: http://bit.ly/193-2018-bcb. A mensagem que encaminhou a MP 775/2017 ao Congresso já destacava este aspecto. V. EMI 00005/2017, BACEN, MF, de 31/3/2017.
5 Idem, ibidem.
6 Ônus e gravames são expressões polissêmicas. Uma abordagem preliminar, necessária para a especificação do SREI, pode ser consultada aqui: JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas, 2022. Acesso aqui.
7 JACOMINO. Sérgio. Registro de Garantias no BACEN – um ataque ao sistema registral. São Paulo: Observatório do Registro, 25.5.2012. Acesso aqui. Vide também JACOMINO. Sérgio. A inconstitucionalidade dos meteoros. Loc. cit. Acesso aqui.
8 Bastante impressiva era a opinião de TEIXEIRA DE FREITAS. Na reforma de Paranaguá (1862) o jurista do Império disse a propósito da chamada venda a retro: “A legislação, como todas as instituições humanas, não está condemnada á immobilidade, e na parte relativa ás hypothecas muito convém estudar a historia della, para ver-se como da primitiva e grosseira idéa da transmissão do immovel no penhor e na venda a retro chegou-se ao systema das hypothecas occultas do Direito Romano, e como das instituições feudaes brotou o germen das hypothecas publicas e especiaes, hoje em maior ou menor escala estatuidas nos codigos e legislações modernas”. V. Reforma Hypothecaria. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1860, p. 88-89.
9 A tendência igualmente se verifica nos artigos 7º e 8º da Lei 11.922/2009. Cheguei a discutir brevemente as questões que decorrem da opção legislativa em pequeno artigo publicado. JACOMINO. Sérgio. A opacidade dos registros eletrônicos privados e o risco sistêmico ao crédito imobiliário. In Registro Público de Imóveis Eletrônico – riscos e desafios. Op. cit., p. 127 e ss.
10 A expressão é de Ricardo DIP. Registros sobre registros # 50, 3/5/2017. Acesso: https://bit.ly/3d7nw6w [mirror].
11 GRAU, E. R. Direito, Conceitos e Normas Jurídicas. São Paulo: RT, 1988, p. 118-119 ; JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. SREI – Ontologia titular – Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações, 10/11/2021, São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais. Acesso aqui.
12 O duplo aspecto decorrente da inscrição – inoponibilidade e fé pública registral -, a partir da Lei 13.097/2015, é bem estudado por IVAN JACOPETTI DO LAGO. Segundo o autor, inaugurou-se a novidade da eficácia material do registro trazida pela Lei 13.097/2015 que, segundo ele, é “mais ampla, e tem por objeto proteção geral ao terceiro de boa-fé, pela eficácia material do registro”. Cf. LAGO. Ivan Jacopetti do. A Lei 13.097 de 2015 e sua contribuição para a Governança Fundiária. RDI 81, jul./dez. 2016, p. 178.
13 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 152.
14 CARVALHO. Afrânio. Op. cit., p. 299.
15 Sobre as distinções entre cédulas escriturais e cartulares, bem como acerca do papel das entidades registradoras e custodiantes, criadas e fiscalizadas pelo Banco Central, confira: JACOMINO. Sérgio. CNGR -Central Nacional de Gravames Registrais. São Paulo: Observatório do Registro, 2023. Acesso aqui.
16 BRANDELLI. Leonardo. MAZITELI NETO. Celso. Avaliação de risco de créditos em recebíveis imobiliários e a Lei 14.382/2022. In Sistema Eletrônico de Registros Públicos comentado. NALINI. José Renato, Org. São Paulo: Forense, 2022, p. 80, passim. O colapso ocorrido com conhecido banco de investimentos brasileiro, que acabou por gerar rombo bilionário, deu-se por não se registrar operações de cessão liquidadas. A reação do mercado foi a criação de mais um registro especializado – Central de Cessão de Crédito (C3).
17 JACOMINO. Sérgio. Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Boletim do IRIB em Revista n. 354, mar.2016, especialmente O registro é o que os seus meios condicionam e determinam, p. 74 et seq.
18 “Os dados dos registros de imóveis de todo o país estão descentralizados e é justamente essa arquitetura tradicional, uma espécie de blockchain analógica, que tem impedido, ao menos até agora, que os dados registrais sejam devassados, ao contrário de outras bases de dados do próprio governo federal, por exemplo. JACOMINO. Sérgio. Protocolo para-registral. São Paulo: Observatório do Registro, 1/10/2020. Acesso aqui.
19 JACOMINO. Sérgio. MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9/3/2022. Acesso aqui. O assalto às bases de dados centralizados não poupou os cartórios. Desde a invasão do site da AnoregSP em 27/12/2007, vários órgãos foram vítimas, como a ARISP, IRIB e o próprio CNJ. Entretanto, o mais grave terá sido o acesso à base de dados da ARPEN: Falha de cartórios expõe dados de ao menos 1 milhão de pais, mães e filhos. FSP 29/10/2019. [mirror].
20 Curiosamente, a recente regulamentação de entidades registradoras, encarregadas da securitização dos recebíveis, a cargo do Banco Central do Brasil, aponta para a criação de plataformas interoperáveis, não centralizadas, resguardando as atribuições próprias de cada entidade registradora e estabelecendo protocolos de interação entre elas. V. art. 9º e seguintes da Resolução BCB 308, de 28/3/2023, publicada no DOU de 30/3/2023, Seção 1, p. 148.
21 Os movimentos de reforma são revérberos de práticas recomendadas pela UNCITRAL. Third-party effectiveness of a security right. UNCITRAL. Guide on the Implementation of a Security Rights Registry. Viena. UN, 2014, p. 10 et seq. A ideia de publicidade de direitos de garantia, uma evolução tradicional e natural da Civil Law, foi assimilada pelo Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, como se pode ler em Publicity of Security Rights Guiding. Principles for the Development of a Charges Registry. EBRD, 2004. Acesso aqui. São ideias que se espraiaram em vários contextos.
22 Diário da Câmara dos Deputados, ed. 6/2/2018, p. 187-190.
23 Emenda de Plenário EMC 6/2018, Dep. RUBENS OTONI.
24 EMC 8/2018 CDEICSDE 9/5/2018, Dep. ELI CORRÊA FILHO.
25 § 1º As entidades de que trata o caput deste artigo deverão ser autorizadas por órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta a exercer a atividade de escrituração de duplicatas.
Sérgio Jacomino: Quinto Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Ex-presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra.
Fonte: Migalhas
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