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Artigo – O renascimento da hipoteca como modelo primário de garantia imobiliária – por Fernando D. C. Blasco
20 DE OUTUBRO DE 2023
Ao se considerar o menor custo e a maior inteligência da constituição e da execução da hipoteca, haverá cenários em que, desde já, ela deve assumir o espaço que até aqui vinha sendo ocupado AF.
O novo marco legal das garantias (PL 4188) acaba de ser aprovado pelo Congresso Nacional. À espera da sanção presidencial, atualiza o sistema de constituição e de execução das garantias mobiliárias e imobiliárias no País.
Historicamente, a execução das garantias imobiliárias no Brasil dependia de ação judicial. Em 1966, pelo Decreto 70 (do não qual se tratará aqui) e, em 1997, pela lei Federal 9.514, que trouxe a hoje já conhecida alienação fiduciária em garantia imobiliária (AF), o ordenamento jurídico passou a conter previsão de execução extrajudicial de garantia imobiliária.
A execução extrajudicial da AF se processa diretamente nos cartórios, sem necessidade de intervenção judicial. Três características marcam esta via: (i) previsibilidade de custo de execução, (ii) previsibilidade de duração do processo de excussão e (iii) absurda redução de espaço para adoção de meios protelatórios – o devedor não tem direito de apresentar uma petição de contestação com argumentos variados perante o cartório; ou prova que pagou, ou o procedimento segue, sem prejuízo de, em paralelo, ele buscar o que entender pertinente na via judicial. É mais barato, mais rápido e mais simples.
A lei de 1997, em sua redação original trouxe um texto espelhado em uma situação negocial específica, a aquisição financiada de imóvel residencial. O instituto, assim, não continha regramento adequado a outras finalidades, como quando presente imóvel não residencial, ou quando a garantia não visava a financiamento.
O marco legal resolve razoavelmente bem essas e outras situações, prevendo: (i) autorização da AF superveniente, que pode ser registrada de imediato e terá efeito em caso de cancelamento da anterior ou se, após executada esta, houver saldo em dinheiro (que se prestará ao credor da AF superveniente); podem haver várias AFs supervenientes, que se ordenarão de modo similar aos graus da hipoteca; (ii) extensividade da garantia para novas obrigações, desde que mantidos mesmo credor, prazo final de pagamento e valor máximo garantido e havendo permissão contratual (assim, não é preciso cancelar o registro existente, apenas se averba a informação das novas obrigações garantidas – isto evita custo e discussões de perda de preferência em face de direitos contraditórios); (iii) escolha do registrador imobiliário que realizará as intimações do garantidor e devedor inadimplente, dentre os registradores dos imóveis dados em garantia, havendo mais de um; (vi) possibilidade de aceitação, em segundo leilão, de lance de 50% do valor referencial; (v) não exoneração do saldo da dívida pelo fato do segundo leilão, como regra geral (ou seja, se a dívida superar o valor auferido em leilão, o credor poderá cobrar por outros meios o saldo, exceto se for aquisição de imóvel residencial fora de consórcio, quando se mantém a antiga regra da quitação pelo fato do leilão); (vi) cross over em default de obrigação garantia por mesmo imóvel; entre outras melhorias que dão maior liberdade e racionalidade na contratação e execução da garantia .
Em avanço, o marco legal instituiu a execução extrajudicial da hipoteca. O procedimento nasce similar à execução extrajudicial da AF, porém com distinções relevantes.
(i) Na hipoteca, para excutir o imóvel, o credor não precisa arcar com ITBI ou custo de qualquer registro na matrícula; na AF, incidem o imposto e o custo de averbação de consolidação de propriedade.
(ii) Na AF, uma vez consolidada a propriedade no credor, surge um procedimento de ordem cogente, que gera a obrigação de se levar o bem a leilão; na hipoteca, o credor pode desistir do procedimento, seja antes do primeiro ou do segundo leilão; daí se falar que na AF existe um “ponto de não retorno”, ausente na hipoteca.
(ii) Na hipoteca, não havendo lance vencedor no segundo leilão, é facultado ao credor (a) adjudicar, de imediato ou posteriormente, o imóvel a si (só nesta hipótese tendo de pagar ITBI), (b) realizar, ele próprio, a venda privada do bem a terceiro, durante 180 dias (pelo valor mínimo de 50% do valor de referência do bem; assim, credor não arca com o custo de aquisição e não contabiliza o bem a seu patrimônio – claro, se o preço alcançado for consideravelmente maior, o credor adjudicará o imóvel e depois o revenderá), ou (c) manter a hipoteca, podendo depois promover novo leilão, adjudicar o imóvel a qualquer tempo ou promover execução judicial de parte ou da totalidade do crédito; já, na AF, não há qualquer faculdade e o imóvel se aperfeiçoa no patrimônio do credor pelo fato da frustação do segundo leilão.
A hipoteca ainda apresenta características melhores no que toca à sua constituição e à liberdade de clausulação e a ela também se previu a extensividade para novas obrigações. Então, haveria algo pior nela em relação à AF?
De maior importância, uma característica, os bens garantidos por AF não se sujeitam à recuperação judicial (art. 49, §3º da lei 11.101/05) ou à falência. Segundo o artigo 83 da lei Falimentar, os créditos do falido se classificam em (i) créditos trabalhistas até cento e cinquenta salários mínimos, do que seguem (ii) créditos gravados com direito real de garantia até o limite do valor do bem;, (iii) créditos tributários não extraconcursais, (iv) créditos quirografários, (v) multas contratuais e as penas pecuniárias e (vi) créditos subordinados. Ou seja, a hipoteca não seria oponível à classe dos créditos trabalhistas de até 150 salários mínimos. Ademais, pelo mesmo motivo de fundo, ainda que fora da falência, as decisões trabalhistas diferenciam o alcance dos institutos.
Evidentemente, nem todos os garantidores são pessoas sujeitas a falência, bem como vários serão os que não possuem credores trabalhistas, como pode se dar em sociedades de propósito específico e em outras estruturações. Além disso, a saúde financeira do garantidor pode ser analisada antes da – e durante a – contratação da garantia, inclusive para se estabelecer hipóteses de vencimento antecipado ao primeiro sinal de má saúde financeira. Por fim, embora números soltos e descontextualizados digam muito pouco, fato é que o Brasil possui hoje duas dezenas de milhões de CNPJ ativos e, anualmente, não se deferem mil falências em território nacional.
Do futuro, espera-se uniformização quanto à proteção em face dos créditos trabalhistas. A reforma caminhou no sentido de aproximar os institutos da hipoteca e da AF. No texto final, acabou-se por ser reprovada emenda que permitiria mesmo a livre cessão dos direitos do fiduciante, sem anuência do credor. Não há aqui espaço para aprofundamento, mas não é demais pensar que o uso da palavra “propriedade”, no contexto da AF, poderá começar a soar como uma inadvertida sinédoque, em que o “acessório” toma a razão de ser do “principal”. Em termos práticos, parece ser a hora de melhorias legislativas, para, textualmente, afastaram-se do efeito da lei falimentar os créditos garantidos por AF e por hipoteca.
De qualquer modo, ao se considerar o menor custo e a maior inteligência da constituição e da execução da hipoteca, haverá cenários em que, desde já, ela deve assumir o espaço que até aqui vinha sendo ocupado AF.
Fernando D. C. Blasco é jurista e tabelião de notas em São Paulo.
Fonte: Migalhas
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