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Artigo – As “holdings familiares” e o problema da invalidade – Parte III: pacto sucessório, lesão à legítima e outras razões subjetivas
28 DE SETEMBRO DE 2023
Em nossos dois últimos textos – parte I e parte II -, aqui publicados, analisamos três problemas de invalidade comumente encontrados nas chamadas “holdings familiares” à brasileira, aquelas em que, entre tantas outras ilegalidades, acaba por ocorrer o total esvaziamento patrimonial dos membros da família e a destinação do patrimônio para essas pessoas jurídicas. Entre os problemas mais comuns estão: a) a presença de negócio jurídico indireto, a gerar nulidade absoluta por fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do Código Civil); b) a configuração de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente sua nulidade absoluta (art. 167 do Código Civil) e c) o desvio de finalidade ou utilização disfuncional da personalidade jurídica, por desrespeito ao art. 49-A, parágrafo único, do Código Civil, a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica não só para fins de responsabilização como também para fins de atribuição.
Neste terceiro e último texto da série, serão estudadas mais três razões de invalidade dessas “holdings familiares”, novamente a ensejar a mais grave das nulidades, todas relacionadas a questões cogentes ou de ordem pública.
A primeira razão de nulidade absoluta a ser exposta é a eventual presença de pacto sucessório, vedado pelo art. 426 da codificação privada em vigor, segundo o qual “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. Trata-se da vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina, o que remonta ao Direito Romano. A hipótese, no atual sistema brasileiro, é de nulidade absoluta virtual ou implícita, pois a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção, como consta do art. 166, inc. VII, segunda parte, do Código Civil.
Como se sabe, a expressão pacta corvina traz alusão ao corvo, que se alimenta de animais mortos. José Fernando Simão explica que existiram cinco motivos fundamentais a amparar a regra do art. 426, considerada também como norma cogente ou de ordem pública.
O primeiro, citado por Bevilaqua, está relacionado a um “surto de sentimentos imorais, porque tomam por base de suas combinações a morte da pessoa de cuja sucessão se trata, sejam os pactos aquisitivos (de succedendo), sejam renunciativos (de non succedendo)” (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 – Série Leituras Jurídicas -, p. 56). Assim, o sentido da norma proibitiva é amplo, vedando-se também atos unilaterais com conteúdo sucessório.
O segundo motivo para a existência do art. 426 do Código Civil, apontado por Carvalho Santos, é o de “despertar sentimentos de tentação para a prática de crime, levando o interessado ao extremo da eliminação daquele de cuja herança se trata”. Assim, o corvo – o beneficiado – poderia planejar a morte daquele que fez a estipulação contratual, para tirar algum benefício próprio.
O terceiro motivo é que tais pactos seriam perigosos, atentando contra a decência pública, o que é defendido por João Luiz Alves, Washington de Barros Monteiro e Maria Helena Diniz.
Como quarto motivo, de acordo com Silvio Rodrigues, estaria o fato de que a “sucessão de pessoa viva representa apenas perspectiva futura e distante de um bem, de maneira que o herdeiro, necessitando de dinheiro imediatamente, não podendo suportar o ônus da demora em receber sua herança pode, de maneira atabalhoada e afoita, vender seus direitos futuros por valores inferiores ao real, sofrendo um forte prejuízo material”; há no art. 426 do Código Civil uma norma de proteção do herdeiro (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 – Série Leituras Jurídicas -, p. 56).
Por fim, mais uma vez com fundamento em Bevilaqua, sustenta-se, como quinto motivo para essa vedação, que, “ainda que contasse com a concordância da pessoa de quem a sucessão se trata, contrariariam o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis, até o momento da morte do disponente. Assim, a justificativa do dispositivo superaria a tradicional noção de votum alicujus mortis e passaria a cuidar do interesse do herdeiro e até mesmo do disponente de quem a sucessão se tratará” (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 – Série Leituras Jurídicas -, p. 56).
Não se pode negar que, na atualidade, a norma é contestada por alguns juristas, que pleiteiam maior abertura legislativa para a efetivação do planejamento sucessório no Brasil. E talvez isso ocorra na recente Reforma do Código Civil, de lege ferenda. De todo modo, no momento, trata-se de norma em vigor – existente, válida e plenamente eficaz -, que não pode ser afastada pela convenção das partes, caso contrário haveria afronta a norma de ordem pública. Temos defendido a alteração do art. 426 do Código Civil, com a inclusão de alguns parágrafos de exceção, e talvez isso ocorra em breve.
Sendo assim, atualmente, cláusulas de contrato social ou de acordo de sócios que de antemão disciplinam regras sucessórias, muitas vezes com renúncias e prefixação de valores, parecem-nos incontornavelmente eivadas de nulidade, sendo possível também cogitar de sua invalidade, não só pela violação ao art. 426 mas também com base no art. 166, inc. II, do Código Civil. A ilicitude fica clara pelo desrespeito à proteção da herança, tida como um direito fundamental pelo art. 5º, inc. XXX, da Constituição Federal de 1988, assim como ocorre em outros países do modelo romano-germânico.
Como outra hipótese de invalidade a ser analisada, neste artigo, a segunda, sabe-se que um dos fundamentos do nosso sistema sucessório é manter a intangibilidade da legítima ou reserva, com vistas não só à proteção dos herdeiros como também à subsistência do nosso Direito das Sucessões. Nesse contexto, em matéria de Direito Contratual, segundo o art. 549 do Código Civil, é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Essa doação, que prejudica a legítima – quota dos herdeiros necessários -, é denominada doação inoficiosa.
Como herdeiros necessários, sempre é importante lembrar que na literalidade do art. 1.845 do Código Civil estão previstos os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Porém, com conhecida decisão do Supremo Tribunal Federal, de reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 da codificação privada, e equiparação sucessória da união estável ao casamento, pensamos que ali também deve ser incluído o companheiro (Informativo n. 864 da Corte, com repercussão geral de maio de 2017). Cabe esclarecer que se trata de consequência sucessória do decisum que, indiretamente, repercute no plano contratual. De todo modo, talvez a Reforma do Código Civil em curso retire esse tratamento do cônjuge e do companheiro como herdeiros necessários.
Sobre a doação inoficiosa, portanto, o caso é de nulidade absoluta textual (art. 166, inc. VII, do Código Civil), mas de uma nulidade absoluta parcial, eis que atinge tão somente a parte que excede a legítima. Assim, como tem decidido o Superior Tribunal de Justiça há tempos, “a doação ao descendente é considerada inoficiosa quando ultrapassa a parte que poderia dispor o doador, em testamento, no momento da liberalidade. No caso, o doador possuía 50% dos imóveis, constituindo 25% a parte disponível, ou seja, de livre disposição, e 25% a legítima. Este percentual é que deve ser dividido entre os 6 (seis) herdeiros, tocando a cada um 4,16%. A metade disponível é excluída do cálculo” (STJ, REsp 112.254/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 16.11.2004, DJ 06.12.2004, p. 313).
Não se olvide que a Corte tem entendido que o valor a ser apurado com o fim de reconhecer a nulidade deve levar em conta o momento da liberalidade. Assim, “para aferir a eventual existência de nulidade em doação pela disposição patrimonial efetuada acima da parte de que o doador poderia dispor em testamento, a teor do art. 1.176 do CC/1916, deve-se considerar o patrimônio existente no momento da liberalidade, isto é, na data da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador. O art. 1.176 do CC/1916 – correspondente ao art. 549 do CC/2002 – não proíbe a doação de bens, apenas a limita à metade disponível. Embora esse sistema legal possa resultar menos favorável para os herdeiros necessários, atende melhor aos interesses da sociedade, pois não deixa inseguras as relações jurídicas, dependentes de um acontecimento futuro e incerto, como o eventual empobrecimento do doador” (STJ, AR 3.493/PE, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 12.12.2012, publicado no seu Informativo n. 512).
Entretanto, tratando-se de doações sucessivas, praticadas por meio de vários atos continuados, tal regra não só pode como deve ser mitigada. Como pontua, entre os clássicos, Pontes de Miranda, “se houve diferentes doações, todas – desde que houve herdeiros necessários – se computam, para saber se há violação da porção disponível. Não se levam em conta as doações que foram feitas ao tempo em que o doador não tinha herdeiros necessários; mas somam-se os valores das que se fizeram em todo o tempo em que o doador tinha herdeiros necessários” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. XLVI, p. 250-251). No mesmo sentido, Agostinho Alvim leciona que, “quando várias doações são feitas, o ponto de partida, para o cálculo da inoficiosidade, é a primeira. Do contrário, o doador iria doando, cada vez metade do que tem atualmente, e todas as doações seriam legais até extinguir a fortuna” (ALVIM, Agostinho. Da doação. São Paulo: RT, 1963, p. 184-185).
Todo esse raciocínio, como não poderia ser diferente, deve ser aplicado às “holdings familiares”, em especial quando a integralização de capital ou de recursos é feita de forma sucessiva, com vistas a lesar a legítima de algum ou alguns herdeiros necessários, cuja proteção envolve normas de ordem pública. A impossibilidade de disposição, por qualquer bem, que exceda a reserva está prevista de forma peremptória no art. 1.789 do Código Civil, in verbis: “havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança”.
Além dessas duas causas de invalidade neste artigo estudadas – o pacto sucessório e a lesão à legítima -, é comum se verificar uma causa de invalidade relacionada com algum aspecto subjetivo familiar, como a situação em que se pretende retirar direitos de filhos havidos fora do casamento, em claro desrespeito ao princípio da igualdade entre filhos, previsto no art. 226, § 7º, da Constituição Federal e no art. 1.596 do Código Civil.
Ademais, temos visto, na nossa experiência prática, atos que almejam uma “blindagem patrimonial” e de suposto planejamento, como transações, permutas e dações em pagamento desproporcionais realizadas entre marido e mulher ou entre pais e filhos, de forma simulada, com o intuito de excluir outros membros da família. Tais atos engendrados são até comuns em nosso País, pela quantidade de casos concretos que nos chegaram para análise nos últimos anos. Um deles, inclusive, foi objeto de parecer jurídico publicado em revista científica, escrito pelo primeiro autor deste texto (TARTUCE, Flávio. Dação em pagamento: simulação. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, n. 56, out./dez. 2013).
Mais recentemente, também como objeto de parecer, analisamos hipótese fática patológica de um grande empresário que esvaziou todo o seu patrimônio durante três décadas, destinando a uma pessoa jurídica, por atos sucessivos, bens de valor considerável e sempre preservando a legítima, considerando-se os atos de disposição isoladamente. Ao final, o único herdeiro necessário, seu filho, recebeu apenas um quinto daquilo a que teria direito, em clara fraude à legítima. Ao final, houve composição entre as partes, diante dos riscos que a ação de invalidade poderia ensejar para a entidade.
Também podemos destacar a situação concreta, analisada por estes autores em conjunto, de montagem de uma “holding familiar” de esvaziamento total patrimonial, em desatendimento a todas as hipóteses analisadas nos nossos três textos, com claro intuito de, depois de constituída, excluir um membro da família da administração das empresas, visando a efetivação de vinganças, deixando o excluído à míngua, totalmente sem bens.
Como pudemos expor nos três artigos que escrevemos, muitas são as razões para decretar a invalidade das “holdings familiares”, no modelo que infelizmente tem sido “vendido” em nosso país, sobretudo nas redes sociais e por profissionais do Direito. Todas as razões elencadas geram a nulidade absoluta do ato de constituição, bastando uma delas para que se tenha a desconstituição do negócio jurídico, com efeitos ex tunc. Ademais, a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo (art. 169 do Código Civil), cabendo a qualquer interessado a alegação da nulidade absoluta, mesmo ao Ministério Público, podendo ainda haver a decretação de ofício pelo julgador (art. 168 do Código Civil).
Como está claro pelos textos, não é possível superar todas as razões que ora apresentamos. Esperamos, portanto, que as palavras que lançamos possam servir para uma mudança de consciência dos profissionais da área jurídica, para que esses atos nulos cessem na nossa realidade prática.
Pare encerrar, lembramos que é preciso ter responsabilidade na construção de um Direito Privado que seja eficiente mas que, ao mesmo tempo, tenha lastro jurídico. Atos e negócios jurídicos nulos não podem ser admitidos pelos profissionais do Direito e devem ter sua disseminação estancada, sob pena de se sacrificar o próprio sistema jurídico e de gerar incerteza, insegurança e injustiça para a sociedade.
Fonte: Migalhas
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